(http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?tl=1&id=906103&tit=Deixemos-a-lingua-em-paz)
Quando uma autoridade apresenta projetos de regulação do uso social da língua, eu logo me assusto. E me assusto, em primeiro lugar, como cidadão. Hoje, a autoridade quer determinar como devo usar as palavras. Amanhã vai querer dizer que livros poderei ler. Depois, que músicas poderei ouvir. E, por fim, que ideias e crenças estarei autorizado a ter.
Não há como deixar de sentir nestes projetos um forte cheiro de autoritarismo. E essa sensação se agrava – e muito – quando observamos a história do século 20: os governantes que quiseram controlar o uso da língua constituem um time de credenciais nada recomendáveis (Hitler, por exemplo, queria, em nome da defesa da língua pátria, “purificar” o alemão de palavras do iídiche). Sempre me pergunto se este padrão histórico é mero acaso.
Mas, além de reagir como cidadão, reajo também como técnico no assunto. Há uns 40 anos me dedico ao estudo científico das línguas e, por isso, não posso evitar dizer que, subjacente a estes projetos, há um preocupante desconhecimento de como as línguas funcionam.
As línguas ampliam continuamente seu vocabulário. Pelos cálculos de Antônio Houaiss, o português tinha 40 mil palavras no século 16 e tem hoje aproximadamente 400 mil. A história dos últimos 500 anos explica por que nosso léxico teve de aumentar dez vezes. E isso se deu por dois processos: a criação de novas palavras (os chamados neologismos) e a incorporação de palavras de outros idiomas (os chamados empréstimos).
É preciso que se diga que o segundo processo foi, nesse meio milênio, muito mais produtivo que o primeiro. Calcula-se que aproximadamente 35% do nosso vocabulário são de palavras de outros idiomas. Nesse total, estão desde palavras das línguas dos povos que habitavam a península Ibérica antes da ocupação romana até as do inglês incorporadas nos últimos cem anos, passando por aquelas que foram (e continuam sendo) importadas de inúmeras outras línguas americanas, africanas, europeias e asiáticas.
Assim, o uso e eventual absorção de palavras de outros idiomas constituem uma solução e jamais um problema. São um fator de enriquecimento e não de empobrecimento das línguas. Temos, portanto, bons motivos para deixar a língua e seus falantes em paz.
E acrescente-se a isso um outro fato a que poucos atentam: os falantes, na própria dinâmica da vida social, usam palavras de outros idiomas, absorvem algumas e, o mais importante, descartam a maioria, sem que haja a necessidade intervenções legiferantes. Exemplo próximo nosso é o vocabulário do futebol. Quando o “esporte bretão” chegou aqui, praticamente a totalidade das palavras era do inglês. Hoje, sobraram não mais que duas (gol e pênalti). O mesmo processo estamos assistindo agora com o vocabulário da informática: mais de dois terços das palavras do inglês já foram descartados. Felizmente, para horror dos que querem tudo regular, a própria sociedade re gula o funcionamento da língua. E o faz com mais inteligência e propriedade do que os que se metem a rabequista.
Apesar de tudo isso, a Assembleia aprovou um estapafúrdio projeto de iniciativa do Executivo que obriga que sejam traduzidas palavras de outros idiomas que ocorram em propagandas expostas no estado, estipulando multa de R$ 5 mil para o seu descumprimento.
Como será ele aplicado? O primeiro problema será definir o que são “palavras de outros idiomas”. Pode parecer simples. Mas, considerando que 35% do nosso vocabulário é composto de “palavras de outros idiomas”, como saberemos quais de vem ser “traduzidas”? Pizza, show e internet, por exemplo, vão precisar de tradução? E o que é exatamente traduzir? Tec nologia bluetooth deverá ser tecnologia dente azul? O que precisamente se estará resolvendo com isso? E, por fim, quem serão os fiscais aplicadores das multas, se nem os especialistas (os lexicólogos) sabem como estabelecer com precisão quando um estrangeirismo passa a ser um empréstimo? E um empréstimo deixa de ser uma “palavra de outro idioma”?
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