(Sírio Possenti)
Meu pequeno
sonho é que não haja mais aulas de português que não sejam aulas de português.
Chega de aulas para dividir palavras em sílabas, ditar com pronúncias
artificiais, copiar do quadro, sublinhar substantivos, “tirar” verbos da
segunda conjugação, responder a perguntas bobas para supostamente verificar a
compreensão de frases banais como “O burrinho subiu a montanha para pastar”
(Quem subiu a montanha?).
Muitas aulas
de gramática também são bem bobas. Alguém sabe por que as aulas de todos
os anos começam com sujeito e predicado? Já imaginaram aulas de matemática
recomeçando sempre com soma e multiplicação? As adjetivas explicativas estão
entre vírgulas? E quem colocou as vírgulas? Deus? Alá? O papa? O Neymar?
Meu sonho geral
inclui que se leia muito e durante as aulas. E que os textos lidos sejam
comentados e que sejam dos que mexem com a cabeça dos alunos, que os colocam
“pra cima”, que exigem que seus cérebros trabalhem. E que as músicas que eles
eventualmente ouçam não sejam da marca Michel Teló – para isso não precisam
sair de casa.
Mas meu
principal pequeno sonho tem a ver com escrita. Escreve-se mais hoje – com os
meios eletrônicos ¬- do que antes, o que gera um pouco de otimismo. Mas eu me
refiro à escrita “trabalhada”, discutida, analisada. As aulas são para escrever
e revisar textos. O professor no papel de revisor, como numa editora, é
bem mais interessante do que como simples corretor. É que as atividades em
torno dos textos devem fazer sentido histórico. E a revisão tem esse sentido
(quem quiser ler sobre isso pode pedir como presente o livro Inscrever &
Apagar, de Roger Chartier).
Vou mostrar
um pouco disso “revisando” dois tipos de texto: um antigo é um de aluno;
que todos diriam que é ruim. Em relação aos dois, a atividade sugerida é do
mesmo tipo: reescrever. Num caso, para atualizar (dicas sobre edição e reedição
são bem-vindas). No outro, para adequar ou revisar (dicas sobre a norma são
importantes).
Considere-se
este texto do século XIV: “Comta-se que huu leom era tam velho que se nom
podia mouer; e emcontrou com huu asno e com huu touro e com huu porco. Veendo
estes que o leom per velhiçe nom se podia mouer, disseram antre si”… (Nota:
“huu” deveria ter um til no primeiro “u”, mas minha máquina não sabe fazer
isso; marquei a diferença com itálico).
Numa aula de
português, os alunos reescreveriam este texto de modo a torná-lo atual, de modo
a poder ser publicado numa edição moderna, sem pretensões filológicas. Certos
fatos devem ser comentados: as mudanças regulares (mesmo que pareçam ser só de
escrita) devem ser anotadas (por exemplo: mouer > mover, huu > um, leom
> leão, nom > não etc., de pronúncia ou de escrita; e pelo menos uma
sintática: nom se podia mouer > não podia se mover, não podia mover-se).
Desenvolvem-se assim a capacidade de observação e a consciência linguística.
O resultado
da revisão seria (pode haver soluções alternativas): “Conta-se que um leão era
tão velho que não podia se mover / mover-se (mexer, andar). Encontrou um asno
(burro), um touro e um porco. Vendo que o leão, por (por causa de) sua velhice,
não podia se mover (andar etc.), disseram entre si”…
Outro trecho
é o início de um texto de aluno de terceira série, coletado e analisado por
Eglê Franchi em Redação na escola; e as crianças eram difíceis (quem não sabe o
que fazer nas aulas pode aprender quase tudo de que precisa lendo este livro).
“Eu e meu golega fomos pescar no riu comesou a puxar e ele viu e puxou e o
ansol enroscou e ele subiu na árvore para denherosça e o ansol caio dreto do
riu”.
É claro que
o texto tem problemas. Mas também tem virtudes, muita coisa bem escrita. Além
de ser um começo engraçado de uma história de pescaria. Se lemos este texto
junto com alguns antigos, nos quais a grafia resultava de tentativas dos
escritores e não era fruto de uma lei, nosso pessimismo pode diminuir. Além
disso, é para que os alunos possam aprender que existe a escola. Se soubessem
escrever corretamente desde sempre, as aulas não seriam necessárias.
Pode-se
reescrever o texto por etapas. Sugiro começar pela grafia (mas se poderia
começar pela pontuação ou preenchendo “lacunas”). Mais ou menos assim:
“Eu e meu
colega fomos pescar no rio começou a puxar e ele viu e puxou e o anzol enroscou
e ele subiu na árvore para desenroscar e o anzol caiu dentro do rio”
Tudo pode
ser comentado à medida que se arruma o texto: alguns erros de grafia decorrem
da pronúncia (riu), outros, do sistema (s / z em anzol); especialmente, é bom
mostrar que, se o aluno escreveu “enroscou”, poderia ter errado menos
escrevendo “desenroscar”.
Em seguida,
pode-se mexer na pontuação, o que pode exigir outras pequenas alterações
(eliminar ocorrências de “e”, por exemplo). Sempre há várias alternativas. Uma
pode ser:
“Eu e meu
colega fomos pescar no rio. Começou a puxar. Ele viu e puxou. Mas o anzol
enroscou e ele subiu na árvore para desenroscar. O anzol caiu dentro do rio”.
O texto pode
ser alterado de outras formas, para torná-lo um pouco mais “elegante”. Por
exemplo:
“Eu e meu
colega fomos pescar no rio. Os peixes começaram a beliscar. Ele viu e puxou o
anzol, mas (o fez com muita força e) o anzol acabou enroscando na árvore. Teve
que subir para desenroscar, mas então o anzol caiu no rio / na água”. Pode-se
reescrever este texto durante uma manhã inteira, acrescentando dados como
mencionar tipos de peixes, de iscas, dar o nome da árvore, informar se o rio
era fundo ou perigoso, se a pescaria acontecia de tarde ou ao anoitecer, se
pescavam para comer ou por diversão etc.
Se uma
“classe” fizer este tipo de trabalho duas vezes por semana durante cinco anos,
é certo que o domínio da escrita acabará sendo quase sofisticado. O único
“equipamento” exigido é um professor que saiba fazer isso…
O texto
antigo que citei acima eu o li na Antologia Nacional, livro em que aprendi de
fato a ler durante meu “ginásio”. Inclui textos de todas as épocas, comentados
em seus aspectos gramaticais e históricos, sem nenhum viés – nem contra, nem a
favor. Mesmo sem que se estude explicitamente variação linguística ou história
da língua, vai ficando claro que as lições de gramatiquinha são ridículas
quando comparadas ao que os textos mostram e ensinam.
Os alunos
merecem uma ração escolar melhor.
(http://terramagazine.terra.com.br/blogdosirio/blog/2012/05/10/92/)
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